GC: Falando
do destino da tua família, como tudo começou?
R: Ui...
queres que conte a minha história toda? Olha que começa antes do meu nascimento…
GC: Claro
que sim, quero saber a origem da relação dos teus pais!
R: Infelizmente,
há 20 anos atrás, as mães não eram tão simples e viviam à base de bem parecer,
de tabus, ninguém explicava as filhas o que era o sexo. A minha mãe tinha um
namorico de pouco tempo quando sucumbiu às tentações, perdeu a sua virgindade e
engravidou de mim. Logo na primeira vez! É preciso pontaria e azar!
Como era
comum à época, foram obrigados a casar. O meu pai não queria, odiou a ideia de
deixar a juventude e dedicar-se ao papel de marido e pai. Nasci, tinha a minha
mãe 19 anos acabados de realizar. 2 anos depois nasceu o meu irmão, uma criança
com Trissomia 21, com problemas cardíacos e de visão. A minha mãe aceitou-o e
dedicou-se sempre a ele nunca tendo trabalhado a partir do seu nascimento. Já o
meu pai morria de vergonha de ter um filho diferente, nunca saía com ele,
presentes de natal e aniversário eram apenas para mim, o meu irmão não existia,
era algo que vagueava pela casa e que ele nem prestava atenção. Gritava-lhe
muito, enervava-o. A minha mãe e eu protegíamo-lo. A família do meu pai tem e
sempre teve muito dinheiro, portanto ele cresceu sem valores senão os
materiais. Ele acredita que ser bom pai é ter um cartão de crédito e tudo o
resto é por conta dos professores. A sociedade que eduque! Dou-te um exemplo:
tinha eu 16 anos, o meu pai comprou-me uma mota. Eu nunca quis uma mota! Mas
ele comprou para mostrar que era um pai incrível. Antes da mota chegar a mim, já
ele tinha andado a mostra-la pelo bairro todo, ostentando o incrível pai que
era. Fui a última pessoa a tocar na mota. Fui experimenta-la, caí, obviamente.
Nunca tinha andado em nenhuma. Desci uma rua a alta velocidade, saltei da mota
assustada, esfolei os joelhos, rasguei as calças e o meu pai apenas teve uma
atitude: correu para a mota a verificar se esta estava bem. Enfim, cresci com
situações destas de forma recorrente. Se tinha boas notas afirmava que
seguramente era porque deveria ter copiado por alguém. Nunca valorizava nada.
Tem um complexo de superioridade incrível. Se ele cair de umas escadas, é
porque estas estão tortas, mal construídas. Se tu caíres é porque és um
desastrado que não repara em nada nunca. Na minha casa o ambiente era este. O
homem perfeito, o Deus, que dava todo o dinheiro para a casa e as encostadas,
eu e a minha mãe, que ele controlava e o filho que para ele não existia.
Cresci
rodeada de gritos e violência psicológica. Claramente o meu pai é um homem que
necessita pisar os outros para se sentir homem e importante. Com a minha mãe
era pior. A mim dava me muito dinheiro para que os vizinhos reparassem. Já com
ela, dava-lhe 5€ por semana e ofendia-a se esses fantásticos 5€ não durassem a
semana toda para comprar pão. Ela não podia comprar roupa nem ir beber café. Tudo
durou até 2007, até aos meus 18 anos. Quando o meu pai decidiu arranjar uma
amante. E o culminar foi quando se descobriu que o meu irmão tinha cancro.
Nesse dia, ele abandonou oficialmente o filho que tanto o envergonhava. Ficámos
sozinhas com um menino de 16 anos com Trissomia 21 e um cancro, sem carro para
podermos socorre-lo caso acontecesse algo. Ficámos sós. Alias, a minha mãe
ficou só. Eu estava na Universidade. Depois, o meu pai virou para mim outra
faceta. Começou a dar-me dinheiro em conta-gotas, afirmando aos outros que
tinha de ser, que era disciplina, porque eu gastava-lhe o dinheiro todo em
borgas. Eu, que nem sou de sair e nem bebo ou fumo. Mas ele tinha de justificar-se
de algum modo, afinal ele não vive sem a aprovação de terceiros.
Tive de
procurar um part-time. As situações com ele repetiam-se, tornaram-se insustentáveis.
Uma vez atrasaram-se a pagar no meu emprego. Eu não tinha dinheiro nem para
comer. Telefonei-lhe a pedir 5€ apenas. A resposta foi: "Também não
tenho". E andava ele na altura a construir uma casa de raíz para a sua
amante e nessa semana ofereceu-lhe um carro. Gritava e queixava-se que gastava
muito dinheiro na medicação do filho doente, mas as obras avançavam. Um dia, o
meu irmão foi de urgência para Lisboa e ele não pôde acompanhar porque tinha de
estar em casa à espera do electricista. Para mim foi a gota de água! Em novembro
de 2010 telefonei-lhe, disse-lhe poucas e boas e informei-o que lhe daria uma
prenda de natal: a liberdade total. Deixaria de falar com ele, deixaria de ter
filhos e ficaria em paz. Perdi cartões de crédito, fiz questão de entregar tudo.
Não quis nada mais. Saí da universidade no último ano, congelei a matrícula e
regressei à minha cidade.
O meu irmão
faleceu em 2010. Ele não quis contribuir monetariamente para o velório. Andamos
todos, a família materna, a fazer uma vaquinha para tentar cobrir as despesas.
E assim a minha vida mudou radicalmente. Perdemos a casa, ele ficou com ela,
tinha dinheiro que nós não possuímos para a pagar. Eu e a minha mãe mudamo-nos,
eu tive de começar a trabalhar em qualquer coisa que aparecesse, afinal só
posso declarar o 12ºano. Para a minha mãe é pior. Tem 42 anos e nenhuma experiência,
descontos inexistentes. A única coisa que sabe fazer é o que a vida lhe
ensinou, cuidar do filho doente. E assim estamos, assim chegamos a este ponto.
Uma mulher sem vida, de luto e eu perdi tudo o que conhecia para aprender a
viver de outro modo.
GC: Qual
a relação actual com o teu pai?
R: Nenhuma.
Ainda há dois dias entramos no mesmo café e ficamos cada um em sua ponta do
balcão. Ele baixa sempre a cabeça quando me vê, é incapaz de me olhar. Quero
acreditar que sejam remorsos, infelicidade. Um ser humano assim não pode ser
feliz. Uma pessoa que enterra uma filha viva e abandona alguém diferente à
morte só pode ter um karma desastroso.
GC: Há
perdão possível?
R: Não.
Nunca demostrou nenhuma ponta de caracter. Já irá morrer assim.
GC: Nem uma
leve esperança existe numa reconciliação futura?
R: Não.
Seria sempre uma armadilha. Eu não tenho pai, é algo muito bem resolvido na
minha cabeça. Cresci a sonhar com ver-me livre dele. Portanto, é algo que
queria há anos. Só nunca pensei que acontecesse tudo isto.
GC: o
que a tua mãe sente relativamente a tudo isto?
R: Ódio.
Ela é uma pessoa muito amargurada, rancorosa. Não consegue avançar. Eu consegui
estar no mesmo café que ele e não me sinto afectada, é como se não o
conhecesse. Ela não, ela procura saber informações, procura irritar-se. Creio
que se existisse o crime perfeito, ela já o teria matado.
GC: Como
sentiste que o teu irmão viveu a indiferença do teu pai?
R: Não
sei... ele nunca falou, entende-lo é muito relativo. Ele não nutria de grande
proximidade pelo nosso pai mas era generoso, tentava mima-lo quando tinha oportunidade.
GC: Que
lugar tem o teu irmão na tua vida?
R: Um
peso na consciência. Porque ao afastar me do ambiente e ao ver a minha mãe
viver só para ele, quando cheguei aos 18 e fui embora, desliguei-me muito e
desliguei-me na altura em que não poderia faze-lo porque nunca tive real noção
de que seria assim tão grave. Sinto me muito culpada.
GC: Que
gravidade?
R: Do
cancro. Era algo ainda muito distante, nunca tinha visto ninguém perto de mim
passar por isso.
GC: O
que lhe dirias hoje?
R: Dizer
não serve de muito. Acho que o importante é fazer. Faria diferente. Tentaria
não ser tão radical, não me afastar de casa por causa de um membro.
2 comentários:
Eu nem sei o que dizer... Eu não tenho tido uma vida fácil, mas tive a sorte de ter um bom pai e uma boa mãe. Se existe alguma justiça nesta merda de mundo, espero sinceramente que o teu pai tenha o que merece.
Gata: Somos duas. Ainda quero acreditar em justiça.
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