Deixo-vos com uma carta de um leitor publicada no jornal Diário de Coimbra da última quarta-feira, na rubrica do jornal Fala o Leitor. Para ler com muita atenção!
“Fala o Leitor: Direitos dos doentes
Sr. Director, Imagine que está numa cama de um hospital e ouve dizer para o doente que está ao seu lado: hoje não vamos poder levantá-lo da cama porque não temos profissionais em número suficiente para o fazer. Nem hoje nem amanhã, porque é fim-de-semana, e ao fim-de-semana todo o hospital funciona com menos profissionais, mesmo que isso signifique que acorde na segunda-feira cheio de dores articulares e com mais secreções nos pulmões devido ao tempo que ficou deitado e imobilizado. E que signifique que terá de permanecer mais tempo no hospital porque a sua pneumonia demorou mais tempo do que o previsto a ser tratada. Imagine que está numa cama de um hospital e que ouve uma conversa entre dois enfermeiros acerca da má qualidade dos materiais, que tem de sofrer várias picadelas no braço porque os cateteres para administrar a medicação que precisa foram adquiridos a um baixo custo. Imagine que na passada semana foi vítima de dois banhos de urina porque os sacos colectores de urina são demasiado frágeis!
Imagine que no meio deste cenário alguém comenta à sua frente que leu no jornal “Sol” ainda em Agosto, que este hospital “fechou 2008 com um resultado líquido de um milhão de euros”. Mas será possível pensa você, resultado líquido? Ah claro, é possível, ainda há poucos dias ouviu alguém comentar que só cerca de meio milhão de euros devem os HUC aos enfermeiros em trabalho extraordinário, programado ilegalmente!
Ainda bem que estou em coma, é o que lhe ocorre, se estivesse acordado teria de correr ao gabinete do utente a apresentar uma reclamação. Não pelas horas que devem aos enfermeiros, isso pouco lhe importa, mas por o hospital estar a reduzir o número de enfermeiros por turno, para assim ver se paga o que não quer pagar em dinheiro. O problema é que está a pôr em causa os seus cuidados de saúde! E na pneumonia do meu vizinho ninguém pensa? Ás vezes até lhe apetecia acordar do coma e voltar para a sua vida antiga, mas com as notícias que se ouvem no mundo real, quem tem vontade de acordar? O duro é viver o resto da vida com a culpa de ter convencido o filho a escolher a profissão de consultor financeiro. Não há dúvida que melhor emprego não podia haver, tem a vida feita o rapaz, o problema é viver com as consequências! Moralmente não deve ser fácil imaginar a angústia das pessoas que vai despedindo, tantas vidas destruídas. Porque um consultor financeiro para reduzir custos numa empresa tem de cortar invariavelmente nos recursos humanos. Com que benefício afinal em empresas o ramo da saúde? Será que esta crise mundial não será um aviso de que algo não está a funcionar bem? Só espero que o meu filho não tenha vindo fazer consultadoria para os HUC, morria de vergonha se alguém viesse a saber. Se ao menos ele me viesse visitar…
Joaquim Silva – Coimbra”
Uma carta muito bem redigida e relativa à minha casa profissional, com um estilo de escrita frontal e reflexivo que me identifico, revelando os primeiros sinais de uma crise de saúde anunciada.
A transformação dos Hospitais Públicos em Hospitais E.P.E. (Entidade Pública Empresarial) veio trazer uma busca incessante pelo lucro, estrangulando os recursos humanos e consequentemente a qualidade dos serviços prestados, neste caso, a qualidade dos cuidados de saúde dirigidos ao doente, uma pessoa com o direito de ser cuidada de forma personalizada e com a dignidade que merece como ser humano e como contribuinte social. É um facto!
Enquanto esta situação não for invertida, continuaremos a ouvir os enfermeiros falar mal dos cateteres, discordar da escolha dos obturadores que obstruem a administração endovenosa, puncionar veias sem luvas porque o stock semanal reduzido já acabou, andar pelos corredores dos serviços que nem maratonistas porque dois enfermeiros terão de suportar com um serviço de 30 doentes, num turno da tarde, com doentes com elevada dependência, doentes que complicaram e familiares ansiosos por uma simples atenção do enfermeiro de serviço, entre muitas outras situações pouco gratificantes. No meio disto tudo, a principal vítima são os doentes!
No final do mês, os enfermeiros continuam a ser licenciados mas a ganhar como bacharéis, quando percebemos a actualização salarial de muitas outras classes, e aguardam por uma luta brava até aos 65 anos de idade, altura em que legalmente estarão aposentados, com ou sem andarilho…
Para terminar, e amenizando o tom duro da reflexão, deixo-vos com uma frase de uma enfermeira aposentada que se encontrou comigo há uns dias e que me disse assim:
“Não desesperes, enfermagem é das profissões mais bonitas, uma profissão cheia de rosas que, tal como qualquer rosa, também tem os seus espinhos, mas cada rosa vale mais do que todos os espinhos juntos…”