Está concluída mais uma rubrica "Acrescenta-me um
Ponto", desta vez relativa ao tema Suspense. Um conto com uma diversidade
cultural e criativa própria de vários co-autores e ao mesmo tempo com um fio
condutor tão impressionante como desafiante. A história tem um fio sempre
imprevisível e recheado da personalidade de cada co-autor, sem perder o sentido
da trama. Há detalhes que podiam ser melhor explicados, mas a intenção não é
apenas essa. O importante está conseguido, o destaque do imenso valor de uma criação
em conjunto de uma história única. Juntos somos muito mais fortes. Continuemos
a criar em conjunto, em qualquer momento! Obrigada pela vossa participação e
boa leitura.
Lista de participantes:
1 - Gonçalo Cardoso (O Sabor da
Palavra)
2 - Buxexinhas (Pedacinhos de Mim)
3 - Karochinha (O Meu Eu)
4 - A Minha Essência (Roupa
Prática)
5 - Olívia Palito (Olívia no País das
Maravilhas)
6 - L' Enfant Terrible (L' Enfant Terrible
Lx)
7 - Utena (Os Meus Idealismos)
8 - Alexandra Martinho (Ouso escrever)
9 - AC (Nada de Coisa Nenhuma)
10- Poppy (Apontamentos de Luz)
11- Briseis (O Meu Pedestal)
12- Teté (Quiproquó)
13- Vítor (O Predatado)
14- Rogério Pereira (Conversa Avinagrada)
15- Lídia Borges (Searas de Versos)
16- Maria João Martins (Pequenos Detalhes)
17- Filoxera (Escrito a Quente)
18- Alex (O Meu Sofá Amarelo)
19- Marta Vinhais (Com Amor)
20- Luz (Luzes e Luares)
E tudo começa, assim...
" Já tinha dobrado as duas da manhã. Estava a sair
da emissão de rádio, incomodado com um ouvinte que alegava a minha falta de
isenção jornalística. Segundo ele, apenas dava voz aos ouvintes do sexo
feminino e os temas escolhidos revelavam uma tremenda homofobia. Estapafúrdio,
dizia para mim! Mas, para o exterior resolvi o problema com a introdução de uma
música de intervenção social. E assim, fechei o programa. Peguei na mala, desci
as escadas em direcção ao parque subterrâneo e ao chegar junto do carro encontrei
um segredo envenenado..."
" No seu vestido vermelho delineado na pele, ela
olhava-me intensamente, recostada no capô do meu carro, como um lince que
espera a sua presa. Por momentos, o meu coração parou de bater.
"Voltou"... pensei angustiadamente. Fantasmas do passado e segredos
escondidos no recanto mais negro do meu ser...renascidos da minha cinza. Em
passos lentos, dirigi-me a ela. As palavras silenciosas do meu olhar,
disseram-me para onde ela me levaria. Entrámos no carro seguindo para o local
temido..."
"por ambos.
Aquela falésia onde, alguns anos antes, a tragédia se
abatera sobre as suas vidas alterou os seus futuros para sempre. E todos os
anos, no mesmo dia, encontravam-se antes do amanhecer, naquele pedaço de rocha
que se erguia sobre o mar, numa esperança vã de expiarem os seus pecados mais
profundos. Chegados ao local, saíram do carro e mais uma vez, as suas mãos
encontraram-se, os seus corpos aproximaram-se e ela disse-lhe..."
"Com a voz trémula, sussurrada, gélida, com a postura hirta
e conciente do momento, Amanda começa a debitar desenfreadamente como
tudo aconteceu, naquela fatídica noite.
- "Não tive culpa! Não tive! Acredita em mim, por
favor! Foi um incidente. Foi ele que escorregou da falésia, ele"!
- Sedutora, mas ao mesmo tempo frágil, ela sabia exatamente como emaranhar
um homem na sua teia. Sabia exatamente a palavra certa a ser usada, o gesto
proveniente, o olhar mais assertivo para a ocasião. Manhosa, lança-o num
envolvente abraço onde o choro compulsivo é senhor do momento. Entre soluços,
mas com a voz doce, repete, incessantemente, "não fui eu"! Não fui
eu"! Com o rosto apoiado no peito de Edmundo, via-se claramente o sorriso
dissimulado que fazia. Ele, estava completamente rendido à fragilidade dela,
mas, ao contrário do que ela pensava, que o tinha nas mãos, Edmundo, também
tinha algo a dizer..."
"acerca daquela fatídica noite. Edmundo fixou o olhar
na falésia e ficou em silêncio por alguns segundos, enquanto os braços de
Amanda o envolviam. De repente, ficou tudo absolutamente claro na cabeça de
Edmundo, as peças do Puzzle mental começavam a encaixar-se na perfeição.
Lembrou-se da conversa off record que tivera com o inspector da polícia acerca
do relatório da autópsia de Fred. Segundo o mesmo relatório, Fred havia
ingerido uma dose substancial de whisky, confirmando assim o álibi de Amanda,
de que Fred se desequilibrara e caíra daquela falésia. Porém, fez-se luz e um
pormenor fulcral escapara a ambos:ao inspector da polícia e a Amanda, mas não a
Edmundo..."
"Isto porque Fred não bebia whisky, sofria de doença
celíaca, de modo que tudo o que contivesse glúten, o que incluía bebidas feitas
de malte, não lhe passavam pela garganta. Por outro lado, a revelação que Fred
fizera a Edmundo um dia antes da tragédia era de todo desconcertante, tanto
mais que dizia respeito aos três, sendo que o conteúdo da mesma tivera desde
então um profundo impacto em Edmundo, ao ponto de o mesmo perder parte da sua
imparcialidade jornalística. Ainda assim, envolto no choro soluçado de Amanda,
Edmundo era incapaz de proferir uma palavra, de partilhar com ela o que
pensava, porque havia mais um elemento no jogo, uma dúvida perene que o levava
a sentir-se tal como o mar revolto e sem definição, que vislumbrava no
horizonte..."
"Não querendo, mas ao mesmo tempo sem conseguir parar a
maré das lembranças, chegou-lhe à memória aquela noite, que hoje lhe dava o
conhecimento do facto de Fred não beber whisky. Fred confessou-lhe num ousado
momento de coragem que se sentia atraído por Edmundo e que isso o deixava sem
saber como agir, pois nunca tinha sentido isso por um homem nenhum, já que
sempre fora um mulherengo, por natureza! A convivência dos dois, muito por
culpa de Amanda, o lamber das feridas causadas por esta mulher de escrúpulos
nulos, tinha feito com que os sentimentos florescessem em dois homens, que
mesmo nada indicando que assim fosse os levou a sentir o que para ambos
deveria ser tabu. Edmundo voltou à realidade com um soluço mais audível de
Amanda e quando a olhava no profundo dos seus olhos verdes deu-se
conta..."
"Do quanto aquela mulher já havia sofrido. Fred,
horas antes de falecer, havia contado a Edmundo que Amanda aos 20 anos se havia
submetido a uma cirurgia de retribuição sexual. Sim, Amanda fora um menino em
outros tempos, mas hoje era aquilo a que Fred e Edmundo chamavam de
tentação. Edmundo olhava-a e um misto de sentimentos lhe assolavam a mente,
perdera alguém que lhe era muito próximo, um amigo, mas também, um silencioso
admirador. E ali, diante dos seus olhos estava a mulher indefesa e
esbelta, que soluçava e por quem ele era estupidamente apaixonado, mas que
carregava tão pesado segredo. Segredo esse, que toda a sociedade condenava e
condena. Edmundo, perturbado, necessitava voltar, ir ao encontro do seu pedaço
de chão para meditar e montar todo aquele puzzle confuso. Suplicou-lhe: -
"Amanda, necessito ir, vamos?". Amanda, para ele olhou, com o olhar
fugaz e disse..."
"És um homem cruel, senão me aceitas como sou. E se
assim for, sem dúvida que não me mereces. Sou especial, sou única, e estou
disponível para te amar, com tudo o que tenho para te oferecer, mas jamais
partilharia a minha vida ou o meu corpo com quem olhasse para para mim com
desprezo ou nojo. Sendo assim, cuida-te, olha para ti, observa-te com atenção e
vais reparar em todos os teus defeitos... por agora, vou apenas embrulhar-me no
teu casaco, sentir o teu cheiro e o teu calor, que são presença nele e esperar
que tu abras os olhos e possas ver para além do físico, do estereotipo e do
preconceito, a mulher que hoje sou...estou aqui, estarei sempre aqui para
ti...de braços abertos...anda, decide-te, não tenho o tempo todo..."
"Mas na cabeça de Edmundo, cada vez mais as dúvidas e
as desconfianças se instalavam. Havia demasiadas incongruências em torno daquela
noite e um relatório conivente com o que Amanda lhe dizia, mas contrário ao que
conhecia de Fred, que jamais poderia ter bebido whisky naquela noite. Não
estavam em causa os desejos que nutria por aquela mulher, não se colocava em
questão a mudança de sexo, o que lhe assolapava as ideias era tão somente o que
teria sido capaz de fazer aquela mulher de escrúpulos nulos, de vermelho
vestida, se soubesse o que acontecera entre eles. Não foi capaz de lhe dizer
nada mais. Levou-a a casa e naquele momento só uma coisa lhe ocorria, tinha de
estar com o inspector responsável pela investigação..."
"O encontro perturbador , aliado ao adiantado da hora,
tinha um efeito nefasto sobre a sua lucidez. Conduzia como um autónomo, a
cabeça longe, muito longe da estrada, por onde os olhos passavam. Era de noite,
ainda. Para não enlouquecer durante as longas horas, que antecediam a manhã e a
sua oportunidade de falar com o inspector, foi para casa, tomou um banho tão
quente quanto conseguiu tolerar e, ainda com o cabelo a pingar água e a pele a
fumegar vapor, sentou-se a escrever a sua versão dos factos, a sua memória dos
acontecimentos, caso algo lhe acontecesse... Escreveu tudo longamente, e
concluiu com a revelação do facto mais bem guardado..."
"Fred confessara-lhe o ciúme que sentia de Amanda! Sem
nunca lhe ter revelado, adivinhara a paixão e o desejo que transpareciam nos
olhos, quando ela aparecia em cena, naquele misto de sedução e de fragilidade
que tanto o cativavam. Parou de escrever. E se...? Não, não era possível, que o
amigo chegasse tão longe... Ele andava pertrurbado - os credores avolumavam-se à
sua porta! - mas suicidar-se?!? Deixando no ar a suspeita de Amanda ser a
culpada pela sua morte?!? Mas porquê aquelas revelações súbitas e inesperadas,
poucas horas antes daquela fatídica noite? Era um plano macabro de mais para
ser verdade..."
"Levantou-se, abriu as janelas de par em par e,
debruçado sobre o parapeito, olhou as estrelas. Voltou para dentro, apenas o
tempo suficiente para apagar a luz. Não houve luar e assim o céu ficava mais
bonito. Acendeu um cigarro, deu-lhe duas baforadas e voltou a contemplar as
estrelas. Com Amanda e Fred na cabeça, ia falando consigo próprio. Aos poucos
foi-se descontraindo no fumo do cigarro, na tentativa de ainda se lembrar do
nome das constelações. Aquela é a Ursa Maior, aquela é a Cassiopeia,
aquela é o Cão Maior. Raios! Porque não se lembrou antes disso? Fez um
telefonema para Irina. Ela costumava ficar com o cão de Fred quando este se
ausentava..."
"A visita a casa de Irina foi demorada e difícil para
ambos. A conversa parecia não ter nexo, com Irina a tentar explicar o
inexplicável de aquela carta de Fred só passados três anos aparecer. Irina
estendera-lhe com as mãos nervosas e foi com as mãos nervosas que Edmundo a
recebera. Despediram-se com o luto nos olhos e sem uma palavra. Na rua e,
depois, pelo caminho leu e releu o texto do sobrescrito cuja letra lhe era
familiar. Em casa, levou um tempo tremendo até vencer o medo e abrir a carta
que lhe era dirigida: Meu querido amigo, quando leres estas linhas já terei
partido. Não vos julgo nem culpo. E a haver culpados, culpo a indignidade que
me foi dada por uma vida que já não merece ser vivida. Não há uma só situação a
explicar este meu acto, que muitos considerarão tresloucado. Foi tudo. Foi a
minha incapacidade de vos amar. Foi a minha confusa sexualidade. Foram as
dívidas acumuladas. Foi o desemprego e a incapacidade de encontrar
alternativas. Foi a minha marginalização no partido. Foi tudo isso e
ainda..."
"Fez uma pausa na leitura para macerar uma lágrima
teimosa e acalmar o lamento que se contorcia no seu coração, agora que a tese
do suicídio lhe parecia ganhar consistência. Pobre Fred! - pensava - Como fora
possível ter chegado a tal estado de desespero sem que ele, seu amigo íntimo,
se tivesse apercebido? O mundo está inquinado de indiferença. O mundo, o
mundo...Mas que mundo? As pessoas são o mundo, o mundo é as pessoas e,
cada uma delas, um fragmentado fraco de um todo forte, mas incompreensivelmente
ignorado.
Edmundo deixou cair os olhos húmidos sobre a folha de papel
que lhe ficara esquecida nas mãos e continuou a ler:
Foi tudo isso e ainda alguma coisa inominável e paralisante.
Algo que não me permite lutar contra o medo. O medo da solidão, o medo de ver,
de vislumbrar mais uma manhã sem esperança nem projectos...
O longo e estridente "trimmm" da campainha que
subitamente encheu a casa, fê-lo estremecer. Pousou a carta na estante, entre
os livros e dirigiu-se para a porta sem disfarçar um gesto de
desagrado..."
"Ao abrir a porta não conseguiu disfarçar o espanto.
"O Senhor aqui, Inspector Madureira?" - O inspector reparou no
semblante cansado e transtornado daquele homem que lhe franqueava a entrada.
"Bom dia, Edmundo! Não se assuste, estou aqui no seguimento da
investigação da morte de Fred Campos, ou melhor, do homicídio do seu amigo.
Temos razões para acreditar que o senhor, neste momento, corre risco de
vida." - Edmundo sentiu-se perdido no meio de tantas dúvidas e revelações.
Tudo lhe parecia cada vez mais confuso e surreal. "Não, não, inspector!
Fred suicidou-se. Tenho aqui a carta que o comprova" - e dito isto, foi
buscar a carta que tinha pousado na estante e que não acabara de ler. Madureira
agarrou nela com curiosidade e leu-a demoradamente. "Onde estava esta
carta?" - perguntou. Edmundo explicou-lhe como Irina a tinha encontrado,
só agora, deixada por Fred dentro de um livro que ela lhe havia emprestado.
"Está a ver, Fred queria suicidar-se..." "Pois queria..."
anuiu o inspector."... mas temo que isso não tenha chegado a acontecer,
meu amigo. Há detalhes da investigação que você desconhece e esta carta pode
explicar muita coisa. Venha comigo até à Judiciária, vou precisar de
si!"...
"A viagem decorreu entre pensamentos elípticos. Por
muito que a memória desse voltas e mais voltas, estas iam sempre ter a duas
questões: o ciúme de Fred em relação a Edmundo e Amanda e a carta de suicídio.
Ou não?... Se há um momento na vida em que nos censuramos a nós mesmos, o de
Edmundo foi esse preciso momento em que se deu conta que, por muito afecto que
nutrisse por Fred, por muita intimidade que tenham partilhado, Edmundo não
conseguia lembrar-se da caligrafia de Fred ou, sequer, se alguma vez a conhecera.
Como era possível prezar alguém da forma que ele prezara Fred, que fazia com
que um pouco de si tivesse morrido com ele, e não saber, sequer, se alguma vez
conhecera a sua letra? Rapidamente teve de voltar ao presente, pois o velho
Peugeot 306 acabava o seu percurso, junto às instalações da Judiciária..."
"E nas instalações da Judiciária, Edmundo foi
confrontado com uma cópia da carta de "suicídio" de Fred. Aliás, com
várias cópias. Era preciso descortinar qual era a original, mas isso era fácil
para os analistas da Judiciária. Rapidamente chegaram à conclusão que a carta
tinha sido escrita por... Edmundo! Mas, se a carta estava na posse de Edmundo,
como teria sido possível multiplicar-se de tal maneira que apareceu nas mãos de
várias pessoas ligadas ao processo? Quem era afinal o assassino? Teria
sido mesmo suicídio e Fred ter-se-ia preocupado em "despistar" o seu
próprio suicídio enviando cartas iguais para várias pessoas? O drama
adensava-se quando..."
"O inspector Madureira voltou a entrar na sala e
perguntou: "Então, o que me diz?" E Edmundo ficou sem saber o que
responder... Não entendia nada; a letra era a sua, de facto. A não ser que Fred
a tivesse imitado... Só podia ser isso e foi o que tentou explicar ao inspector
Madureira, que abanou a cabeça e disse: "Não, meu amigo, os analistas
confirmam que a letra é sua!"...
" É neste preciso momento que Amanda entra, de
rompante, na sala. Deslumbrante, segura, ousada, determinada, vestida de
vermelho, aproximando-se como "felino manso" de Edmundo e do
Inspector.
Senta-se num cruzar de pernas, melhor que o de Sharon Stone
e afirma: - "Fui eu quem matou Fred, empurrando-o para que caísse da
falésia, com receio da concretização do sentimento, já existente entre
eles. Fui eu que falsifiquei todas as cartas, melhor talvez, que Alves dos
Reis fez com o dinheiro. Usei estratégias e métodos, que considero arrojados,
hábeis e inteligentes e que revelarei à polícia, caso me seja pedido.
Inspector, tem aqui as minhas mãos, para que as possa
prender, com as argolas do "amor", assim as considero e lhes chamo.
Quero apenas pedir-lhe que seja satisfeita a minha última vontade, o que foi
aceite pelos elementos presentes da Judiciária, com um aceno de
cabeça.
Aproximou-se de Edmundo, envolveu-o nos seus braços ternamente,
e beijou-lhe a boca, de forma lânguida, longa e arrebatadora.
Um dia, serás só meu. Um dia, serei só tua. Amo-te! "